A esperança também nasce da angústia
Fonte: Guiame
O dia nasce precoce. Antes do sol enfurecer, amanheço com uma sede
diferente. Desperto. Não consigo nomear o que me falta. Pode também ser
uma fome crônica. Há anos convivo com o vazio existencial comum a
santos, poetas, bardos, palhaços, boêmios. Sofro de SND – Síndrome da
Nostalgia Difusa.
Minha alma não se conforma com a presença viva dos que morreram. Quero
mamãe de volta. Ela parece perto. Digo que vou segredar-lhe certas
percepções tardias do meu coração. Pego o telefone e aguardo,
instintivamente, que alguém me atenda do outro lado da linha. Desisto. A
Glícia dorme no armário de minhas memórias.
Melancólico, procuro cheiros, sabores, fotografias, músicas, que tragam
o passado soterrado na poeira de décadas. A dor aumenta. Bisonho, tento
espairecer. Corro; os quilômetros me encharcam de suor, continuo
inconsolável.
Meus olhos não se aquietam se prevalece a palidez de viver.
Condiciono-me a mirar o mundo refulgente. O sofrimento universal,
injusto e desproporcional, entretanto, agride. Brotam falsas culpas. Por
que fui privilegiado em um mundo desigual? Meus esforços para aliviar o
suplício da miséria se mostraram pífios. Não discerni as estruturas
demonizadas da política que discrimina, privilegia, marginaliza. Quando
cheguei a compreender os perigos do poder, estava fatigado e sem
disposição para vestir a capa de profeta. Angustiado, não me contento em
falar às paredes que a corrupção sistêmica, os vícios históricos, as
maquinações das elites, não cumprem desígnios da Providência. Morrerei
acreditando que miséria, injustiça e preconceito representam um acinte à
divindade.
Meu coração não se pacifica com os lenitivos episódicos da vida. Uma
força estranha impulsiona o meu espírito a desejar o que desconheço. As
delícias de uma viagem programada se esgotam no estresse do aeroporto.
Quando cessa a festa, fica uma sensação de fim-de-tarde. Depois de
assinar um título de propriedade sei que ainda assim, não direi à alma:
“Descansa, agora tens em abundância”. Meus “ses” parecem os do Chico. O
que será que será que tanto quero e que vive nas ideias desses amantes/
Que cantam os poetas mais delirantes/ que juram os profetas embriagados/
está na romaria dos mutilados/ está nas fantasias dos infelizes/ está
no dia a dia das meretrizes?
Soli Deo Gloria
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