A parábola é conhecida: Certo homem agonizava. Uma vizinha, sabendo da
iminência de sua morte, sentiu remorso por ter fofocado e conspirado
para destruí-lo. Com pressa de pedir perdão, ainda encontrou o homem
lúcido. Ajoelhou-se ao lado de sua cama e implorou que lhe perdoasse. O
velho respondeu que perdoava, sim, mas antes precisava mostrar algo.
Pediu que a senhora rasgasse o travesseiro e espalhasse as penas ao
vento.
- A senhora, por favor, volte amanhã e recolha as penas que o vento dispersou.
- Impossível, ela respondeu.
-Amiga, posso perdoar-lhe – ele concluiu, – mas o mal que você me fez
ficará como uma daquelas penas que a brisa levou; nem eu nem você
saberemos por onde elas voaram. Você jamais conhecerá as dores ou os
desdobramentos dolorosos de minha história devido a suas escolhas.
Vi “Atonement” (Desejo e Reparação) com os olhos suavemente orvalhados.
O filme merece crítica, sim. Mas forte o suficiente para me encabular.
No escuro do cinema, procurei esconder sentimentos constrangedores.
Identifiquei-me com as personagens. A sinopse básica do filme (copiei da
internet) é a seguinte: Aos 13 anos, a jovem Briony (Saoirse Ronan/
Romola Garai) demonstra possuir grande talento como escritora; sua
criatividade é imensa. Determinado dia, a menina pensa ver a irmã mais
velha, Cecília (Keira Knightley), assediada por Robbie (James McAvoy),
filho da governanta. Depois de algum tempo, outra prima sofre um
estupro. Levada por sua imaginação fértil, Briony tem certeza de que
Robbie cometeu o crime, e o acusa. O rapaz vai preso. A suspeita,
entretanto, vem da paixão que ela nutre por Robbie, não da realidade.
Cecília sofre horrores por ser a única que não acredita na acusação de
Briony.
“Atonement” desenvolve uma trama trágica a partir de sentimentos de
culpa. Aliás, atonement, palavra inglesa comum na teologia, pode ser
traduzida por “expiação”. E expiação, segundo o dicionário, significa
“cumprimento de pena”. Nas antigas religiões, atonement se ligava a
alguma cerimônia de aplacar a cólera divina, com o intuito de promover
reparação.
No filme, Briony destrói um amor que mal teve chance de concretizar-se.
Dona de uma paixão infantil, a vilã camufla sentimentos adoecidos em
forma de auto-retidão. Mesmo menina, mostra-se capaz de alterar o
destino tanto da irmã como de Robbie. O estrago da difamação foge ao seu
controle. Suspeitas podem acabar com pessoas – muitas vezes de forma
irreversível, sem remissão. Calúnia deixa rastro de culpa, sem espaço
para a cura de ninguém.
Somos convocados a cuidar de nossos juízos e intolerâncias. Pessoas
sofrem guinadas e vão por caminhos impensados devido a decisões e
escolhas que outros fazem. Por isso, prefiramos o próximo em honra;
sejamos brandos com todos; acreditemos nas pérolas que o coração
esconde. Melhor escolher a dor da decepção às suspeitas raivosas.
Partilhemos nossas túnicas, caminhemos a segunda milha, levemos as
cargas até de quem acreditamos não merecer. Perdoemos – para o bem deles
e nosso.
Ricardo Gondim
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